Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Folha Guerra sem fim KLESTER CAVALCANTI


ESPECIAL PARA FOLHA

O agricultor Sebastião de Souza, a mulher, Maria de Jesus, e os sete filhos do casal atravessavam uma trilha fechada no meio da floresta amazônica, debaixo de chuva e com lama até os joelhos. O filho mais novo do casal, Clésio, 3, estava sentado nos ombros do pai. O destino da família Souza era a delegacia de São Domingos do Araguaia, no sudeste do Pará. Sebastião queria denunciar à polícia o assassinato de João Barbosa, um amigo da família, morto na noite anterior. No caminho, cinco homens, armados de revólveres e espingardas, saltaram do meio da selva. Os filhos maiores do casal fugiram para o matagal. Sebastião recebeu um tiro de espingarda calibre 12 nas costas. Maria de Jesus atirou-se no chão lamacento.
O menino começou a chorar. Um dos criminosos pegou Clésio pelo braço esquerdo, suspendendo-o como se de um saco se tratasse. O garoto chorava, esperneava, clamava pela mãe. Maria de Jesus quis emergir da lama, mas estava paralisada de pânico. O bandido jogou Clésio sobre o corpo de Sebastião. Os assassinos alvejaram pai e filho. O legista do IML contou treze balas no corpo de Sebastião e oito no de Clésio. Os irmãos Joaquim e Hermínio Branco, fazendeiros da região, foram apontados pelo inquérito policial como mandantes do crime. Nunca foram para a cadeia. Sequer foram julgados. Os assassinatos de Sebastião de Souza, então com 48 anos, e seu filho Clésio ocorreram há mais de 17 anos, mas são o retrato atual da guerra agrária que aflige o Brasil.
A morte da missionária americana Dorothy Mae Stang, uma mulher de sorriso permanente, rosto enrugado e olhar firme, trouxe o assunto à tona. Esse crime merece todos os lamentos e deve, sim, ser investigado para que os culpados sejam punidos. Mas a religiosa foi apenas mais uma pessoa a morrer em conflitos agrários, num país que dá de ombros para os infelizes que vivem em seus rincões. Todos os anos, cerca de cem brasileiros são assassinados na guerra no campo. Diferentemente do que se imagina, raramente as vítimas são militantes do MST. Na maioria dos casos, os mortos são agricultores como Sebastião de Souza. Gente que não costuma invadir propriedades, nunca apareceu de boné vermelho no "Jornal Nacional" e que não quer nada além de um pedaço de terra para plantar e sustentar a família.
Nem sempre os corpos que tombam sem vida são de lavradores. Advogados, sindicalistas e religiosos como Dorothy Stang também são alvo fácil para os fazendeiros, madeireiros e políticos. E eles matam ou mandam matar quem bem entendem porque têm certeza de que não serão punidos. As estatísticas retratam bem essa realidade. Nos últimos 19 anos, quase 1.500 pessoas foram assassinadas em conflitos agrários no Brasil. Apenas 122 casos -cerca de 8%- foram levados a julgamento. Nove mandantes dos crimes foram condenados. Nenhum deles está preso. É esse o ponto da questão. A impunidade é o mais saboroso e nutritivo alimento da guerra no campo.
De nada adianta mandar homens e helicópteros do Exército para o Pará. De nada adianta criar novas reservas ecológicas. Essas iniciativas não surtirão efeito algum nos conflitos agrários. Primeiro, porque as mortes não ocorrem apenas no Pará nos últimos 20 anos, houve registros de mortes em disputas por terra em todos os Estados do país. Segundo, porque os garotos do Exército têm tanta habilidade para enfrentar esse tipo de problema quanto o papa João Paulo 2º para jogar futebol. O que tem de ser feito, isso sim, é uma reforma dura no Judiciário. Juiz não é Deus até que se prove o contrário e os magistrados precisam, sim, ter o trabalho fiscalizado. Enquanto nossa Justiça continuar passando a mão na cabeça dos mandantes desses crimes, sem mandá-los para a cadeia, esses homicídios não terão fim.
Há dois anos, foram julgados em Belém, no Pará, os fazendeiros Adilson Laranjeira e Vantuir Gonçalves, apontados como mandantes do assassinato do agricultor João Canuto, morto no município de Rio Maria, sul do Pará. À época do crime -dezembro de 1985-, Adilson Laranjeira era prefeito de Rio Maria. Os réus foram considerados culpados. A sentença, proferida pelo juiz Roberto Moura, foi de 19 anos e dez meses de prisão para cada um. Mas o juiz concedeu aos condenados o direito de recorrer da sentença em liberdade. E enquanto você lê esse texto, Adilson Laranjeira e Vantuir Gonçalves devem estar bebendo uma cerveja gelada, para aplacar o calor inclemente do sul do Pará. Sim, porque eles ainda moram na região. Quando deve ser realizado o segundo julgamento, ninguém sabe. Nem a Justiça. Pode ser daqui a dez, 15, 20 anos. Pode ser que nunca aconteça. Ou você acha que Laranjeira e Gonçalves vão ficar esperando ser convocados para um segundo julgamento?
A Justiça, na sua imensurável cegueira, acha que sim. Da mesma forma que o presidente Lula acha que enfeitar as ruas de Anapu, município paraense onde a missionária Dorothy Stang foi morta, com seis tiros, com soldados vestidos de verde vai resolver alguma coisa. Não vai. Essa gana em punir os assassinos e o mandante do homicídio da religiosa americana tem ser de vista em todos os casos de homicídios por questões agrárias do Brasil. Na semana passada, outras três pessoas foram mortas na guerra no campo do Pará. São mortes que merecem receber tanta atenção quanto a de Dorothy Stang. A vida da missionária americana vale tanto quanto a de um pobre coitado que não tem onde cair. Morto.


Klester Cavalcanti, 35, jornalista, autor do livro "Viúvas da Terra -° Morte e Impunidade nos Rincões do Brasil" (ed. Planeta, 2004), é editor da revista "Contigo"

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