Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 19, 2004

Agosto 19, 2004


Agosto 19, 2004
Merval Pereira 19 08 2004 A culpa é do algodão egípcio

Quando, no início do ano, os jornais noticiaram que o governo estava comprando, entre outras coisas, 2.472 peças entre talheres, copos, taças (lapidadas a mão, selo ouro) e baixelas para o Palácio da Alvorada, o espanto só não foi maior do que encontrar na relação de compras os hoje famosos 15 roupões de algodão egípcio, “cinco deles de tamanho médio, cinco de tamanho gigante e outros cinco extra-gigante”. Nem as 104 unidades de toalhas em cambraia de linho, redondas e retangulares, e forros, nem as 600 peças de colchas de piquê, fronhas e lençóis em percal para solteiros, causaram tanta sensação quanto os roupões de algodão “obrigatoriamente egípcio”.
Estes ficarão ligados eternamente à imagem do ex-operário presidente como exemplo, mesmo injusto, de que chegar ao poder fez com que se entregasse às mordomias que antes criticava. A devassa na vida íntima do inquilino temporário do Palácio da Alvorada — embora Lula demonstre desejo de permanecer por lá o maior tempo possível, seja pelo anúncio de que a reeleição está nos planos, seja pela brincadeira de que foi ao Gabão aprender com o ditador Omar Bongo como se fica no governo por 37 anos — tem um culpado: o Sistema Integrado de Administração Financeira, o Siafi, que abrange a programação financeira, a contabilidade e a administração orçamentária do governo federal.
Portanto, ao proibir o acesso irrestrito dos parlamentares aos dados do Siafi, o presidente Lula está fazendo o que todo governante tenta fazer: impedir que o fiscalizem. Implantado em janeiro de 1987, esse sistema foi criado com o objetivo de dotar o governo federal de “instrumento moderno e eficaz” do controle dos gastos públicos. A unificação do processamento da execução orçamentária foi entendida, na sua criação, como um passo fundamental para o controle interno das contas do Poder Executivo pela Secretaria do Tesouro Nacional.
Como o Siafi permite acompanhar a destinação das verbas públicas e a execução do orçamento quase em tempo real, tornou-se, sem que para isso tenha sido criado, no principal instrumento disponível de controle também externo das contas públicas. E foi o PT, através do senador Eduardo Suplicy, que transformou os dados do Siafi em poderoso instrumento político.
Ele foi o primeiro a pedir — e a receber — uma senha para poder entrar no sistema e ter acesso a toda contabilidade do governo federal. No início dos anos 90, requereu que todos os deputados e senadores tivessem acesso ao sistema, e a partir daí, a Lei de Diretrizes Orçamentárias passou a ter um artigo que permitia o acesso irrestrito ao sistema dos parlamentares e de assessores legislativos indicados por eles.
Foi o Siafi que permitiu ao senador Suplicy pedir a instalação da CPI dos Anões do Orçamento, em 1993. No início do governo Collor, esse acesso foi suspenso como agora, depois que foram feitas denúncias sobre desvio de verbas da LBA, presidida pela então primeira dama Rosane Collor. Em 1996, no primeiro governo Fernando Henrique, foi o PT quem denunciou, com base no Siafi, o desvio de verbas do Fundo Social de Emergência para compras de alimentos da Presidência da República.
O Sistema Integrado de Administração Financeira tornou-se, graças ao PT, um instrumento de transparência das contas federais. O ex-presidente Fernando Henrique, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2001, não incluiu a obrigatoriedade de registro no Siafi da execução orçamentária, o que é feito diariamente e quase em tempo real. Foi uma gritaria generalizada, e o governo teve que voltar atrás.
Mas não era apenas Suplicy quem utilizava o Siafi para fazer suas denúncias. Fontes não faltam hoje, e não faltaram nos governo anteriores, para abastecer a imprensa com dados e informações vindos diretamente do Siafi. O deputado federal do PT Paulo Bernardo, e o hoje deputado distrital por Brasília, Augusto Carvalho, do PPS, ao fiscalizar gastos públicos, descobriram em outubro de 96, que o governo gastara R$ 36,3 mil em toalhas e guardanapos para o Palácio da Alvorada. Apenas uma toalha custara R$ 8,2 mil. Foi um escândalo.
Graças ao Siafi é possível se fazer o cruzamento entre as verbas liberadas e os votos dados a favor deste ou daquele projeto do governo, em qualquer governo. Antes de cassar o acesso de deputados e senadores aos dados, o governo chegou a cogitar a liberação dos dados para a população em geral, o que seria sem dúvida uma demonstração de transparência orçamentária digna de entrar para a história. Mas o partido que criou o orçamento participativo não está a fim de ampliar a participação do distinto público na fiscalização de seus gastos.
A falta de participação da sociedade na elaboração e fiscalização dos orçamentos públicos, aliás, foi o que mais pesou para que a nota do Brasil no Índice Latino-Americano de Transparência Orçamentária, divulgado ano passado, fosse medíocre. Realizado em dez países por instituições de pesquisas — no Brasil o responsável foi o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) — coloca o Brasil em terceiro lugar no continente, com um índice positivo de 50,3%, atrás do Chile (61,76%) e próximo ao México ( 50,4%). Segundo os pesquisadores, o índice que poderia ser considerado bom seria próximo de 75%.
O tema que recebeu a pior avaliação no Brasil foi o da participação cidadã na elaboração do orçamento ( 20,2%). Para que os controles da sociedade fossem aprimorados, o publicitário Jorge Maranhão, um estudioso dos direitos da cidadania e mentor de um dos sites mais importantes sobre o assunto na internet brasileira (www.avozdocidadao.com.br.), acha que o Poder Judiciário deveria acompanhar a execução orçamentária, o que só é feito a posteriori pelo Tribunal de Contas da União. Nos Estados Unidos há uma ONG chamada Tax Payer que acompanha o dia-a-dia da execução do orçamento e leva ao Judiciário suas demandas. Mas no Brasil do governo petista, pelo visto estamos regredindo em termos de transparência orçamentária.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 7:19 PM
DORA KRAMER 19 08 2004 PMDB vai à guerra no Senado

PMDB vai à guerra no Senado
Enquanto o cenário principal é tomado por outras batalhas políticas, nos bastidores os governistas preparam a reapresentação da emenda que permite a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A data prevista é para a segunda etapa do esforço concentrado de votações, após a Semana da Pátria.
Até aí nada de muito novo, já que a ressurreição da emenda rejeitada em maio deste ano por margem de cinco votos sempre esteve na pauta das intenções dos atuais presidentes das duas Casas e, mais recentemente, passou a fazer parte dos planos do Executivo, antes reticente.
O dado político relevante da história é que o comando do PMDB, embora seja o partido do senador José Sarney, não quer a reeleição e, com a anuência de ministros do partido, promete enfrentar o Planalto e derrubar a emenda no Senado mesmo se aprovada na Câmara, como se prevê.
Num cenário de dificuldades já bem conhecidas para o governo, minoritário no Senado, essa disposição pemedebista para o confronto vai criar forte e inconveniente turbulência política - mais uma - na base de apoio governista.
Sobre a proximidade da guerra, os comandantes da batalha não têm dúvida. A preocupação deles, no entanto, é a extensão e a proporção de suas conseqüências.
Prevêem uma luta pesada, seja em defesa do nome do atual líder da bancada no Senado, Renan Calheiros, para a presidência, seja na escolha de um tertius. Isso significa um enfrentamento aberto com José Sarney que, além do apoio do Planalto, tem aliados nos vários partidos.
Por isso mesmo é que já se fala até na possibilidade de Sarney ser lançado como candidato avulso para, com apoio suprapartidário, bater chapa com o candidato de seu partido no plenário.
Mas para que se chegue até aí, a preliminar é a aprovação da emenda da reeleição. A cúpula pemedebista - que nesta questão junta gente das alas oposicionista e governista do partido - vai tentar, primeiro, influir na decisão da bancada de deputados.
Como a vitória da reeleição na Câmara é dada como quase certa, a ofensiva dos ''contra'' vai se concentrar mesmo no Senado.
Com uma desvantagem. Chegou ao conhecimento do PMDB que o PT teria feito um acordo com o senador Aloizio Mercadante e garantido a ele a legenda para disputar o governo de São Paulo em 2006.
Nesta hipótese, Mercadante, até então um adversário da reeleição no Congresso, passaria a ter interesse na emenda, pois já não haveria razão para combater a permanência de João Paulo Cunha - também postulante à vaga de candidato ao governo paulista - na presidência da Câmara por mais um período.
Na avaliação dos pemedebistas, o governo vai se envolver em mais uma briga inútil apenas porque resolveu patrocinar a ''idéia fixa'' de João Paulo de tentar aprovar a emenda da reeleição a qualquer custo.
A peça forte da campanha interna do PMDB contra a reeleição sustenta-se na lógica das leis eleitorais. Se por decisão do Congresso elas são imutáveis nos 12 meses anteriores às eleições no país para evitar casuísmos, o Congresso não tem autoridade moral para, com menos de seis meses de antecedência, mudar a Constituição a fim de autorizar o uso interno de casuísmos eleitorais.
Causa e efeito
Governistas e oposicionistas andam presos à mesma dúvida: por que o governo sempre arruma uma confusão desnecessária exatamente quando as coisas começam a ir bem para os lados do Planalto?
A resposta parece estar na razão exposta para a edição da medida provisória dando a Henrique Meirelles a condição de ministro, justo agora.
O governo avaliou a hipótese do desgaste, mas achou que, em função das boas novas na economia, tinha gordura política para queimar.
Quer dizer, quando o acerto começa a causar efeito, aposta-se que seja a hora certa de cometer o erro.
Desafinado
Como regra geral, é aconselhável a governantes que resistam a ironias em público, ainda mais se pouco vocacionados ao manejo de floretes.
Não raro soam fora do tom e resultam em algum tipo de agressão a conceitos, situações históricas, condições sociais, raciais, políticas e profissionais.
A última do presidente - ''eu fui ao Gabão para aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição'' - atende a vários quesitos em matéria de inadequação.
Mostra displicência com a questão democrática, zomba da situação interna de um país - se desprezível, por atrasada, foi referendada por sua presença - e ainda abre guarda a que levem ao pé da letra suas palavras de admiração à longevidade política do ditador.
dkramer@jb.com.br
[19/AGO/2004]
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 9:48 AM
LUÍS NASSIF 19 08 2004 Bonapartismo na Justiça

Não se entende a motivação do Ministério da Justiça com a maneira como foram divulgados os "Diagnósticos do Poder Judiciário". Independentemente da qualidade ou não das informações, utilizaram-se informações fornecidas de boa-fé pelo Judiciário para atacar o próprio poder. Criou-se conflito onde deveria haver entendimento. Havia um conjunto de circunstâncias favorável para a modernização do Judiciário. Existem experiências inovadoras e grupos de qualidade dispersos, mas em quantidade muito maior do que em qualquer outra área do setor público. No Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, há a conjugação de presidentes dispostos a encetar uma campanha de informatização e modernização. Essa conjugação de fatores exigia uma atitude de estadista para juntar as pontas, articulando vontades e estimulando a busca do novo. O ministério preferiu comandar o processo e confrontar o Judiciário. A estratégia correta consistia em identificar os grupos modernizadores, os sistemas tecnológicos mais avançados, estimular a transferência do conhecimento acumulado para um sistema de software livre. Depois, caberia ao ministro o papel político indispensável, de levantar a bandeira e, em conjunto com os tribunais, comandar a luta das forças modernizadoras contra o burocratismo. Nada isso ocorreu. O ministério passou a articular a "sua" reforma do Judiciário. Em vez de um pacto para a modernização do país, o que conseguiu foi abrir mais uma frente de desgaste para o governo.
Precatório Da coluna de 4 de abril de 1997: "A grande "clearing" do mercado era a Split (...). Quando quebrar o sigilo bancário da Split e do Banestado, vai sair cheque para todo lado". Da coluna de 6 de abril de 1997: "Pela primeira vez há a oportunidade de penetrar no âmago desse enorme Brasil 2, frio e permissivo, montado ao largo das leis e das normas éticas, um conluio monumental de elites empresariais, contravenção e poder político". Da coluna "A conta da Split nos Estados Unidos", de 8 de abril de 1997: "Até dois anos atrás, quase todos os doleiros da América Latina operavam com dois pequenos bancos nos Estados Unidos, o Piano Banking (controlado pela Casa Piano, do Rio) e o MTB Banking (que grafei erroneamente de MTV). O Piano quebrou. Sobrou o MTB. Para operar o dinheiro, o MTB precisa de uma conta em um banco que tenha a compensação. (...) O MTB abriu sua conta no Chemical Bank de Nova York. E, depois, uma série de subcontas, cada qual de um doleiro da América Latina. A subconta da Split é a Rolex". Esses dados foram divulgados no mesmo período em que o senador Romeu Tuma rumou para Nova York e não trouxe nenhum dado substantivo sobre a atividade. A sucessão de colunas na época narrava em detalhes todo o esquema de doleiros, o papel do Banestado e o do banco Araucária. De 1997 a 2002, segundo dados da Polícia Federal, US$ 22 bilhões continuaram transitando por esses mesmos canais. A CPI terminou em pizza. E-mail - Luisnassif@uol.com.br
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 8:55 AM
JANIO DE FREITAS 19 08 2004 O bando de covardes

Outra vez aí? Você não viu o presidente do seu país dizer que os jornalistas são "um bando de covardes"? Você gasta dinheiro para ler esse bando e depois diz que o seu dinheiro é curto porque o Lula é que não tem palavra, até hoje não fez nada para cumprir a promessa de dobrar o poder de compra dos salários, que até diminui mês a mês. Para não deixar a sabedoria presidencial sem um reparo -no jornalismo fica sempre bem um pequeno reparo junto com o aplauso, e vice-versa-, parece-me que o presidente poderia precisar melhor o alcance do adjetivo tão bem escolhido. Nem todos merecem ser atingidos pelo denuncismo de Lula. Covardes, bem entendido, são só essa maioria que não tem a coragem de se pôr a serviço do governo. Ah, que energia, quantas horas valiosas, que elucubrações e que desnudamento o bando de covardes exige de Lula, de Dirceu, Gushiken, Palocci, do Meirelles de tão virtuosas transações. Ou, perdulário comprador de jornal, não fosse pelo bando de covardes, por que você acha que Lula daria a Henrique Meirelles o título e os privilégios judiciais de ministro, por acaso, menos de 24 horas antes de desfechada pelo governo uma coleta, em âmbito nacional, de documentação sobre movimentadores ilegais de dólares? Alguns covardes sugerem que Lula não agiu só pela glória de ser o primeiro na história a elevar um banco à condição de ministério, já que à frente da entidade estará um ministro e não mais um presidente. Banco com status de ministério, aliás, convenhamos que fica muito bem no governo Lula. À primeira vista, parece que o bando de covardes exige do governo apenas projetos de "controle da atividade de jornalismo", da lei da mordaça contra procuradores e promotores, da proibição de informações jornalísticas por funcionários, e outros fascistismos assim notórios. Quem dera. O bando de covardes obriga o pessoal da Presidência a esmiuçar tudo. Com descobertas alarmantes. Caso, por exemplo, você talvez nem saiba, de um tal art. 100 que o Congresso introduziu na Lei de Diretrizes Orçamentárias, normalizando o acesso parlamentar, hoje restrito, ao Siafi, que reúne os dados da administração financeira do governo. Acesso indispensável à fiscalização do Congresso sobre as contas e ações do governo, como exige o art. 71 da Constituição. Mas o bando de covardes gosta muito de descobrir, pelo exame das contas, realidades sombrias que o governo esconde. Logo, com a mesma ligeireza da medida provisória transformada em socorro urgente para Meirelles, Lula derrubou, pelo veto, o art. 100 da transparência que, por mais de 20 anos, o PT cobrava. Como se vê por essas medidas, e por outras não relembradas, todas típicas de governo amedrontado, seria possível discutir quem, de fato, compõe um bando de covardes. Não vale a pena, porém. Todos sabem que mesmo os jornalistas incorretos jamais poderiam trair os leitores como, só para fazer uma comparação, é a traição de certos políticos à boa-fé dos eleitores, e até à própria biografia.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 8:54 AM
OTAVIO FRIAS FILHO 19 08 2004 Getúlio ainda divide

O cinqüentenário do suicídio de Getúlio Vargas, na semana que vem, será lembrado à luz da desmontagem de seu legado, empreendida nos governos Collor e Fernando Henrique. Esse legado é, por um lado, o de uma economia fechada, protegida da competição internacional, que se industrializou depressa em resultado de uma série de políticas de Estado que compeliam à substituição progressiva de importações. De outro, esse legado se traduz numa forte regulamentação interna e nos direitos sociais concedidos por antecipação -verdadeira base da profunda popularidade de Getúlio. Do ponto de vista formal, como se sabe, houve dois Getúlios. Houve o líder da revolução democrática de 1930 que se equilibrou entre os antagonismos daquela década até se tornar ditador de um fascismo diluído, à brasileira, entre 1937 e 1945. Quando a tendência da Segunda Guerra Mundial se alterou em favor dos aliados, Getúlio afastou-se da Alemanha e aderiu aos Estados Unidos, interessados em utilizar o Nordeste brasileiro como base de operações. Apesar da adesão, a vitória dos aliados gerou uma maré mundial que varreu também o Estado Novo. Deposto em 45, o ditador foi eleito presidente em 50, já investido da condição de líder de massas democrático. Aí começa o outro Getúlio, que se apoiava em sindicatos sob controle governamental, flertava com a esquerda e adotava um discurso ultranacionalista. A sociedade polarizou-se favorável e contrariamente ao velho caudilho, até que o atentado contra Carlos Lacerda, a mando do chefe da guarda presidencial, levou à deposição de Getúlio e a seu último gesto -cálculo sensacional que adiou em dez anos o que viria a ser 1964. Gesto insólito, terrível, dado o hábito nacional de cultivar a auto-imagem de cordialidade, nem por isso ele apaga a trajetória do ditador-presidente, feita de meneios, de rarefação ideológica, de esvaziamento das demandas pela técnica da antecipação e de cooptação de adversários no eterno abraço da conciliação nacional. Com Getúlio se confirma e se aperfeiçoa a estranha forma brasileira de mudar sem mudar, de fazer transições por osmose. Essa a peculiaridade local, acrescida pelo fascínio da personalidade enigmática, reservada e ambígua de Getúlio. Mas convém não perder de vista que seu "modelo" repetiu, em linhas gerais, um fenômeno internacional que predominou entre as décadas de 1930 e 1950. Trata-se de todo um ciclo de governantes autoritários, que induziram a industrializações aceleradas e procuraram domesticar a então emergente sociedade urbana de massas. A geração dos tenentes -que foi a de Getúlio- se atribuiu duas tarefas históricas: industrializar o país e reduzir as desigualdades abissais. Tiveram êxito na primeira e fracassaram na segunda, embora até hoje se pergunte se o Brasil teria evitado uma guerra civil não fossem as concessões sociais que Getúlio obrigou nosso capitalismo primitivo a fazer. Nesse sentido, o regime militar (1964-85) antes completou do que negou o legado getulista. A desmontagem, ainda que parcial, foi obra do "tecno-liberalismo" dos anos 90. Também correspondeu a uma onda internacional a que cada ambiente doméstico se adaptou cedo ou tarde. Cedo ou tarde, também, ficará mais claro se o legado de Getúlio é uma ferramenta histórica que teve sua utilidade, mas se tornou obsoleta, ou se sua liquidação é que terá sido regressiva, no sentido de cavar um abismo ainda maior entre integrados e excluídos.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 8:46 AM
ELIANE CANTANHÊDE 19 08 2004 A Chávez o que é de Chávez

BRASÍLIA - O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, não ganhou apenas um referendo. Ganhou muito mais do que isso ao manter o mandato no domingo passado, com 57,84% dos votos contra 42,16%. Chávez mostrou que é capaz de cumprir todos os mandamentos constitucionais, que tem o apoio dos venezuelanos e que não há vivalma na oposição capaz de fazer frente a ele. Enfim, que é o interlocutor do país com a comunidade internacional e com os parceiros comerciais. Vamos ao principal deles, os EUA. O governo americano detesta Chávez, já retirou um embaixador em protesto contra seu governo, aliou-se descaradamente aos golpistas de 2002, torceu contra ele no referendo e demorou um dia para reconhecer sua vitória. Mas tem de engolir Chávez. É simples: a Venezuela é o quinto maior produtor de petróleo do mundo e um dos mais importantes fornecedores dos EUA. Além disso, com a crise no Iraque sem solução à vista, nunca se sabe o dia de amanhã. É melhor ter uma Venezuela na mão do que dois produtores árabes voando. E quem manda na Venezuela? Quem manda é Hugo Chávez. Significa que a oposição morreu? Não, em absoluto. Mas significa que Chávez se fortalece, a oposição esmorece e que os próximos movimentos, mesmo aparentemente contra Chávez, tendem a reverter a favor dele. Agora vem o mais difícil. Fazer o governante venezuelano abdicar um pouco da beligerância e dos microfones e de fato governar. Para isso, ele precisa fazer acenos para seus opositores menos ferozes (e eles existem), ampliar a capacidade produtiva do país para além da PDVSA (a Petrobras de lá) e fazer um governo mais aberto e menos populista. É possível? Difícil dizer. O preço do petróleo nas alturas (mais de US$ 47 o barril) ajuda muito. Mas depende das condições políticas internas e também de algo fora de controle: a personalidade do presidente. Mesmo quando vence, ele costuma sair atropelando tudo e todos. Ou seja: o risco é de Chávez se voltar contra Chávez.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 8:44 AM
CLÓVIS ROSSI 19 08 2004 Venezuela, sonho e pesadelo

SÃO PAULO - Reproduzo a seguir trecho da reportagem ontem publicada pelo jornal "The Washington Post" sobre a Venezuela: "Na terça-feira, um conflito quase irrompeu no subúrbio de classe média alta de Palos Grandes (em Caracas) quando um conhecido ator e simpatizante de Chávez, Fernando Jaramillo, entrou em uma cafeteria. Imediatamente, os clientes começaram a bater nas mesas, gritando "fora", "fora'". "Comensais se levantaram e cercaram o ator, gritando e jogando copos de água nele. Por fim, um segurança o levou para fora". É um incidente menor, mas bastante didático: enquanto a oposição ao presidente Hugo Chávez o acusa de tendências autoritárias, ela própria tem práticas intolerantes. Nunca é demais lembrar que quem tentou e conseguiu dar um golpe de Estado, ainda que efêmero, foi a oposição a Chávez, não o próprio presidente. Eu jamais daria ao governante venezuelano um Prêmio Nobel de democracia, se houvesse algum. Mas fatos são fatos: em termos de respeito às regras democráticas, pior que Chávez, na Venezuela, só a oposição a Chávez. Basta ver a insistência de setores oposicionistas em não aceitar o resultado do referendo que confirmou o mandato do presidente. Os observadores internacionais, que só os delirantes poderiam chamar de "chavistas", avalizaram a lisura da votação, cujo resultado não é produto de fraude. "Não tivemos a suficiente força e capacidade para fazer chegar nossa mensagem aos que tomariam a decisão", como concede Albis Muñoz, a presidente da Fedecámaras, a principal entidade empresarial venezuelana. Ela é, aliás, a sucessora de Pedro Carmona, o frustrado golpista de três anos atrás. Chávez está muito longe de ser o governante dos meus sonhos, mas, insisto, a oposição a ele, bem como os que compram no Brasil os argumentos dela, são um pesadelo.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 8:42 AM
LULA DESCONTRAÍDO 19 08 2004 FOLHA EDITORIAL

LULA DESCONTRAÍDO
Num momento de "descontração", como foi classificado por sua assessoria de imprensa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Santo Domingo, capital da República Dominicana, declarou que um dos motivos de sua viagem ao Gabão foi "aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder". Depois das dificuldades do primeiro ano de mandato, o quadro de recuperação econômica vai permitindo ao presidente, segundo suas próprias palavras, "sorrir um pouco" -e, ao que parece, se manifestar de forma mais relaxada. Lula já havia, pouco antes, também a título de "brincadeira", chamado de "covardes" os jornalistas que não defendem o projeto do famigerado Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), encaminhado pelo Planalto ao Congresso Nacional. Compreende-se que o presidente se sinta aliviado com os recentes resultados da economia e que se permita, em determinadas ocasiões, imprimir um tom menos circunspecto à sua abundante retórica. É recomendável, no entanto, um pouco de cautela: mesmo ao fazer blagues, é o presidente da República quem fala, com o peso e a responsabilidade inerentes ao cargo. Sem perder de vista que a referência ao Gabão, como interpretou o senador José Sarney, foi um "chiste", não deixa de ser sintomático que Lula tenha escolhido o infeliz exemplo da ditadura africana para manifestar o desejo de ser reeleito -tema que vai sendo introduzido na cena política precocemente, ainda na primeira metade do mandato presidencial. Quanto à frase aos jornalistas, foi de uma inoportunidade a toda prova. Serviu apenas para realçar o antigo vezo do sindicalista provocador, em tudo inadequado a um presidente da República. Até mesmo defensores do projeto repudiaram a declaração. Esperemos que o presidente Lula aproveite bem seus momentos de descontração, mas que procure poupar o país de gracejos de gosto e efeitos duvidosos.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 8:39 AM
Miriam Leitão 19 08 2004 Escolha do Supremo

Se o Supremo Tribunal Federal confirmar decisões anteriores e determinar o pagamento do crédito de IPI a exportadores, a União vai suspender, para revisão, todas as transferências deste imposto para estados e municípios. Dos R$ 20 bilhões arrecadados por ano com o IPI, o governo manda a metade para os estados e municípios. Além disso, serão adiadas medidas, ainda em estudo, para a redução da carga tributária. O que os técnicos do governo explicam é que esta será a única forma de lidar com o peso de um novo esqueleto que pode sair do armário. Será um dos maiores. E, talvez, o mais estranho. As empresas querem receber de volta o que não foi pago. O crédito de IPI é concedido ao exportador que comprou produtos tributados em etapas anteriores. É uma forma de anular a tributação em cascata, que retira competitividade do produto brasileiro no exterior. Desonerar faz sentido, mas o que as empresas reclamam é que quando consomem produtos que têm isenção ou tarifa zero acabam não tendo nada para descontar. Querem, portanto, receber um desconto de um imposto não pago. E a quantia a ser “devolvida” será enorme. A Procuradoria da Fazenda fala em números gigantescos, como R$ 20 bilhões por ano, mas as empresas argumentam que o número está exagerado, que isso é o total do IPI recolhido, das mais diversas fontes. A Fazenda tem que imaginar o pior cenário para saber como cobrir a nova despesa. Mesmo se o verdadeiro rombo for apenas uma fração disso, a discussão correta é: que sentido ele faz? Pode ser devolvido um imposto não pago? A ação é para corrigir injustiça tributária ou para elevar os benefícios a quem já é beneficiado com outros incentivos à exportação concedidos nos últimos anos?
As transferências de impostos federais aos estados e municípios são feitas na razão inversa da força econômica de cada unidade. Quanto mais pobre o município, quanto menor o estado, maior é a importância do repasse no total de suas despesas. Rever essa transferência terá impacto importante na distribuição federativa dos recursos. Além disso, forma-se uma dificuldade maior: como a União conseguirá de volta o recurso já transferido em anos anteriores? Não basta dizer que o problema é do governo federal e que ele se vire. Atinge o país inteiro — direta ou indiretamente.
A demanda é incompreensível do ponto de vista econômico, a conta é alta, os atingidos são muitos. O que o caso revela é, mais uma vez, a extrema incerteza jurídica do Brasil. Esta semana mesmo, um ministro do STF concedeu uma liminar revogando, na prática, cinco artigos de uma lei que foi discutida, analisada, votada e aprovada há sete anos. Já fora o arcabouço para cinco leilões e, de repente, poderia ter vários pontos anulados por um ministro do STF. Que a tese não era sustentável ficou claro na decisão do presidente do Supremo de cassar a liminar, mas lembrou mais uma vez aos investidores a imprevisibilidade do Brasil.
Não há marco regulatório suficiente na exploração energética, no investimento em saneamento e na autonomia das agências que decidem outras concessões de serviços públicos. O que o ministro do Supremo fez, na segunda-feira, foi produzir uma incerteza em um dos poucos marcos regulatórios que parecia estar definido. Não há dúvida que a Justiça tem que fazer seu trabalho e sua função não é meramente homologar os atos de outros poderes, mas certas decisões parecem seguir mais as convicções políticas que os princípios jurídicos. O presidente Lula está na curiosa situação de ter mais problemas com os que indicou para o Supremo do que com os remanescentes de outros governos. Nenhum ministro tem que seguir a orientação de quem o indicou, os poderes são independentes numa República democrática como a nossa. Mas nenhum presidente teve na mão tanta chance: a de fazer cinco ministros, quatro deles escolhidos no primeiro ano. Escolheu alguns que sempre estiveram ao lado do PT, quando oposição. Só que, no poder, o partido mudou muito de convicções. O resultado é que seus atos são mais compreendidos entre os ministros indicados no governo Fernando Henrique.
A incerteza reduz investimentos, o que compromete o crescimento sustentado e encolhe emprego e renda. Um país onde até o passado é incerto, como bem definiu Gustavo Loyola, é um ambiente hostil para empreendimentos, principalmente de longo prazo. Decisões da Justiça que produzem injustiça — como a que determina que os recursos públicos, de todos nós, sejam usados para pagar dívidas inexistentes, como no caso do IPI — aumentam a concentração da renda. Pode-se ver tudo isso, apenas com olhos fiscais: o dinheiro faltará aos cofres públicos e isso exigirá medidas compensatórias.
Ou pode ser visto de uma forma mais abrangente: que país queremos construir? A quem efetivamente o Estado brasileiro deve? Aos exportadores, que querem se compensar de algo que não foi pago, ou aos milhões de brasileiros com necessidades básicas não atendidas? Nessas decisões diárias de todos os poderes é que temos escolhido ser um país tão desigual. É cômodo culpar um suposto inimigo externo — como o FMI, por exemplo — pela nossa desigualdade. A cada dia, cada poder brasileiro tem diante de si dois caminhos: confirmar a concentração de riquezas ou começar a desarmá-la. O feio edifício da distribuição de renda brasileira é construção nossa.
Publicadoem: Thu, Aug 19 2004 1:34 AM

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